O Paulo Gorjão levanta aqui uma questão importante que se vai lendo aqui e ali sempre que se ensaia alguma iniciativa que tenha impacte no funcionamento ou acção do governo com origem nos partidos ou grupos parlamentares da maioria. Invariavelmente ouve-se a reacção que o Paulo teve.
O CDS quer mais cortes no parque automóvel? Está a fazer o quê no governo?
Os deputados queriam mais cortes nas fundações? Não são os mesmos partidos no governo?
Há propostas de alteração ao Orçamento? Mas não foi aprovado no Conselho de Ministros?
Esta reacção tem alguma graça quando se compara com um discurso que se ouve com ainda mais frequência quando se diz que os deputados não servem para nada e que os partidos seguem os seus líderes sem apelo nem agravo. É preso por ser cão e preso por não ser.
Uma das coisas que mais confusão me faz desde que o CDS foi para o governo (porque passei a ser “vítima” disso) é justamente a sensibilidade que a imprensa acusa de cada vez que deputados ou membros dos partidos da maioria demonstram discordância com o rumo do governo ou entre si. Parece que qualquer indício de desentendimento é uma crise governamental. Quem acompanhe a vida política noutro país governado em coligação (ainda que isto se aplique da mesma forma a governos monocolores), como a Alemanha ou a Inglaterra, rapidamente terá de concluir que estes episódios são normais e frequentes numa democracia madura. E ainda bem.
Porque se os deputados existem para estarem caladinhos, para ouvir o “seu” governo e deixar de fiscalizar, alertar e mudar o que conseguem, então mais vale não termos parlamento. Antes, parece-me de valorizar e incentivar que – maioria para aqui, maioria para ali – os deputados demonstrem iniciativas que possam estar a invadir o campo de colegas seus de partido no governo. Se assim não fosse não se tinha mudado o orçamento, não se tinha aumentado o corte às fundações e não se avançaria agora com o censo às frotas automóveis.
Os deputados e os grupos parlamentares têm a obrigação de apresentar as iniciativas que considerem necessárias. Têm ainda a obrigação de manifestar a sua discordância com o governo ou o parceiro de coligação, duma forma leal, quando necessário.
Claro que chumbar um orçamento ou uma moção de confiança é também um sinal de tal desconfiança que se incompatibiliza com a manutenção dentro dum grupo parlamentar que apoia um governo. E ao mesmo tempo há matérias que não conseguem fazer por incapacidade. O parlamento não tem, por exemplo, capacidade técnica para pegar num orçamento e transformá-lo noutro orçamento. Há ainda matérias em que o governo produz legislação que nasce de negociações com terceiros e que a interferência do parlamento pode desfazer um processo em que não participou, pelo que se impõe prudência.
Mas num todo, gostaria de ver as relações entre governo e grupos parlamentares tratadas com menos complexos. A construção duma suadável democracia passa também por permitir espaço de manobra no parlamento e esse espaço é limitado quando a opinião pública trata todas as divergências como crises de regime – quando elas são afinal constatações da saúde desse regime. A estabilidade duma maioria avalia-se no momento das votações das questões estruturantes e não de cada vez que de entre os mais de 115 deputados duma maioria se ouvem vozes de quem faria diferente ou propostas concretas que o governo poderia ter apresentado mas não apresentou. Afinal é normal.
Caro Michael,
Existe um vício de fundo no nosso sistema político que, estranhamente ou não, é mais pronunciado nos partidos maiores.
Como a eleição de deputados é por “listas fechadas” e não existindo, de facto, grande proximidade entre eleitos e eleitores, os deputados acabam muitas vezes por representarem o “partido” (sejam as estruturas partidárias ou interesses mais locais) e não os eleitos.
Para ajudar, e aqui o CDS tem tanta culpa como os outros, existe uma coisa muito esquisita e diria até antidemocrática que é a disciplina de voto. Os deputados deveriam ser livres – e isto devia ser um requerimento legal para não dizer constitucional – de votar de acordo com a sua consciência. A pressão do partido sobre o deputado exercer-se-ia sob as formas naturais de não-apoio a recandidaturas e não com ameaças de processos disciplinares (!!!) e expulsões. Os partidos não podem ser clubes desportivos nem os deputados atletas.
A conjugação destes valores leva a que as pessoas assumam – e de forma não totalmente errada – que os deputados, sendo “funcionários” do partido para todos os efeitos, têm de obedecer ao “patrão”. Uma desobediência implica, obviamente, uma revolta interna.
Como não antevejo no futuro próximo a resolução de nenhum destes problemas (quer passando para um sistema uninominal com círculo de compensação, quer eliminando legalmente a disciplina de voto), suponho que as considerações que escreveste no post continuaram válidas e continuarás a ser “vítima” disso mesmo.
Um excelente artigo. Vou partilhá-lo no facebook