Sobre o debate que aqui referia, houve hoje um desenvolvimento interessante.
Há uns tempos a Comissão Europeia pediu ao ex-comissário António Vitorino que liderasse um processo de mediação entre os “stakeholders” interessados na matéria da cópia privada, para que produzisse recomendações para consideração da Comissão.
O documento final é melhor do que esperava. António Vitorino identifica que houve, recentemente, «the start of discussions in some Member States on possible alternatives to the device based levy system». Recordo a esse propósito a decisão de Espanha que deixou de taxar aparelhos e suportes para passar a compensar directamente as entidades gestoras de direito pelo orçamento espanhol (“Presupuestos Generales del Estado”): de mais de 100 milhões de euro no passado, este ano as entidades gestoras receberão 5 milhões.
António Vitorino acentua também que «In cases where rightholders are remunerated via licensing agreements, for the use (including the copying, as the case may be) of their works, it does not seem justified to make consumers pay a second time, in the form of levies.» Ou seja, que quem comprou uma música no iTunes ou outro serviço que licencia directamente a utilização e reprodução da obra protegida, não deve ser chamado a pagar segunda vez por via da taxa da cópia privada. «These and any other forms of double payment should be avoided.»
Reconhecendo que estas compensações não acabarão de um dia para o outro, por fim é reconhecido que «on account of new business models and changing content consumption patterns, [they are] likely to decline». Evidente para quem siga os desenvolvimentos tecnológicos: streaming, cloud services, etc, farão com que as cópias privadas tenham cada vez mesmo impacte – ergo a sua compensação também.
Quem não quiser perder muito tempo pode concentrar-se no sumário da página 5. Mas gostaria de destacar que em todo o documento o mediador refere a relação do dano (“harm”) (que os espanhóis definiram como de 5 milhões em 2012 e 2013) causado ao detentor de direitos como fundamental para a definição da compensação.
De facto, quem ouviu os interessados, conclui que «views on what constitutes ‘harm’ diverge.» (p. 20). Das decisões judiciais conclui que «Defining and measuring that ‘harm’ would be crucial for the determination of the amount of ‘fair compensation’» Como a cópia privada é uma excepção ao direito de autor, o relator considera que uma das formas de avaliar o dano é «i.e. the additional payment they would have received for these additional copies».
Concordo. E se António Vitorino considera que «I am far from saying that these additional copies would cause minimal ‘harm’ and would not need to be compensated.» (p.21), a mim parece-me que isso não isenta (antes obriga!) o legislador de avaliar exactamente qual o dano que vai compensar antes de se apressar em encontrar um esquema para pagar aos detentores de direitos. E quem já nasceu como eu no mundo em que mp-3, minidiscs e iPods fazem parte do dia-a-dia sente uma coisa: os artistas, autores, editores, etc, de música vendem mais e não menos música/filmes/etc por haver a faculdade de se copiar para discos rígidos, leitores portáteis ou media centres. De facto, se não me for possível copiar este fabuloso disco de Vinicius que comprei há dias, eu não tenho interesse de o comprar. Compro só no iTunes ou dispenso de ouvir o poeta-cantor – seja como for o CD em si de pouco me serve. Ou seja, as editoras vendem mais e não menos por haver a faculdade de copiar e por isso a compensação oferece-se inútil e até ilegítima.
Enfim, em Portugal o debate foi reaberto pelo governo, mas a UE está no terreno. Este relatório de António Vitorino recomenda prudência porque o ordenamento europeu promete mudar. Se a UE avançar para uma nova directiva no sentido de harmonizar este regime (o que é de alguma maneira importante pelo impacte destas taxas no mercado interno), a mudança da lei em Portugal virá por arrasto. Teremos portanto tempo de sobra para discutir estas e outras especificidades que já começámos a discutir aquando da proposta Canavilhas.
A minha opinião mudou pouco.
Relativamente ao exemplo do CD que dá, tomo a liberdade de acrescentar a recente “feature” da Amazon “AutoRip”. Deixar o consumidor copiar o CD parece já não ser suficiente: já se oferece a própria cópia. E Amazon faz isto com o acordo dos detentores de direitos, caindo no âmbito do licenciamento. Um novo fôlego para o formato obsoleto?
http://www.amazon.com/b?ie=UTF8&node=5946775011
Brilhante, desconhecia tal serviço.
E vindo da Amazon tem de estar devidamente licenciado e volta a comprovar que o valor do CD físico é hoje negligenciável. O utilizador moderno quer e precisa de alternativas.
Concordamos na essência: a ser aprovada, é uma lei injusta para os consumidores. Onde discordamos é no facto de se achar que a música vende mais: não vende. Os músicos não recebem mais dinheiro hoje do que recebiam antes dos mp3s existirem. A cauda longa pode implicar que haja mais vendas mas a prática diz-nos que dá menos a cada artista. Que não chega para viverem só dos royalties das vendas dos seus discos, como dantes. Facto que é verdadeiro para artistas grandes e para artistas pequenos. Ou porque é que acha que os U2 e as Madonnas desta vida se fazem à estrada com 50 e muitos anos?
Repetindo, concordamos na essência: não é uma lei justa para os consumidores. Mas tenha em atenção que a música, como os filmes, os jornais, os livros ou qualquer outro meio cultural susceptível de cópia em download, estão a ser injustamente afectados, tornando-se quase como mecenas culturais, a fazer isto por desporto.
A Internet mudou as regras do jogo totalmente e a distribuição dos rendimentos dos autores não tem sabido perceber essa mudança enorme de paradigma. Assim como o legislador não tem percebido. Não se percebe que um apontador de conteúdos (Google) tenha lucros de muitos milhões e quem gera os conteúdos para onde ele aponta não veja uma mísera parte desse lucro. Não se percebe que um apontador de conteúdos (Apple Store) tenha lucros de muitos milhões e quem gera os conteúdos veja apenas uma mísera parte desse lucro. No fundo, está-se a fazer na Internet aquilo que a grande distribuição tem feito em Portugal com os produtores, com os atrasos nos pagamentos, com todos os truques que conhecemos e que não permitem melhorar os conteúdos. A analogia é muito semelhante. É aqui que acho que há muito por fazer. E não é culpa dos consumidores isto por isso que não sejam eles a pagar.
José, eu não digo que o CD deste ou daquele artista tenha vendido mais que no passado – ainda que seja evidente que a variedade disponível tenha aumentado exponencialmente nos últimos anos. (Sou do tempo de ter de ir a Vigo comprar NOFX porque cá não havia :D)
O que eu digo é que a possibilidade de “ripar” ou copiar a música faz esse CD em concreto vender mais do que aquilo que venderia se isso fosse proibido ou tecnicamente impossibilitado. Ou seja: peguemos no mesmo disco, igual em todos os aspectos, menos na possibilidade de se copiado; perguntemo-nos depois qual, ao mesmo preço, vende mais.
O CD como suporte é completamente limitador no mundo do iPod e do WinAmp e tirar música desse mundo é vender menos. Daí a questão: devem ser os produtores ressarcidos dum prejuízo que não sofrem por ser poder copiar a sua música? Mas afinal se vendem mais por isso, onde está o prejuízo?
Quanto ao resto que refere, fica o link para este meu texto sobre a Google: http://blogue.michaelseufert.com/2013/01/17/o-google-deve-dinheiro-a-impresa/
Percebo o seu argumento mas acho que ele não colhe. Em todo o caso quem quiser pode muito facilmente vedar o seu conteúdo ao acesso do Google. Mas na verdade a relação de valor é inversa: é a Google que presta um serviço aos produtores de conteúdos (como este blogue) e não ao contrário.
O mesmo se dirá da Apple Store. Ela significa um serviço legítimo de colocação de conteúdos online. Se a divisão de valor é assim tão prejudicial então deve se recorrer a outra plataforma ou não aceder a ela. Parece algo estranho que uma empresa que crie um serviço do nada ou na linha de outros possa ser alvo de direitos impositivos de terceiros por não concordarem com a sua política comercial.
Estou completamente de acordo consigo em relação aos CDs. É algo que não faz sentido para o consumidor actual e não me vai ver defender isso. Nem isso nem os direitos de reprodução mecânica que a SPA mantém como direito absoluto. E que, sinceramente, são um absurdo no sentido em que eu, enquanto editor, tenho de pagar esses direitos quando faço CDs e não os tenho de pagar quando vendo MP3s. Por muito que entenda a diferença entre um e outro e a razão de ser dos direitos de reprodução mecânica, hoje são um absurdo.
Para que consiga enquadrar melhor o que estou a dizer, gostava de lhe dizer que tenho experiência a lidar com as lojas do lado do produtor. Lidei com mais do que um distribuidor digital para conteúdos, que os coloca em mais de cem ou duzentos sites. Todos eles importantes. Todos eles notórios. Todos eles com publicidade e com boas práticas comerciais. Mas… noventa e oito (!) por cento dos rendimentos daquilo que colocava à venda vinham de dois sites. Um deles é o iTunes. O resto, dos mais de cem ou duzentos sites onde estava a música, não conta para o Totobola.
Por isso, ao dizer que é muito simples, coloco o que tenho a vender noutros sites, não me serve de muito. Porque é o mesmo que dizer adeus a 98 por cento dos rendimentos para mim e para os músicos que editam. Por mim, aquilo que diz era óptimo: trabalhava só com outros sites com percentagens mais justas de partilha. É que, para além de tudo o resto, a percentagem que sites como o iTunes nos tira roça o escandaloso. Já para não falar nos valores de taxas que surgem como cogumelos sabe-se lá de onde e que temos de pagar sem hipótese nenhuma de protestar.
O consumidor, infelizmente, não pensa como eu e prefere comprar tudo o que tem para comprar online em duas ou três lojas e em nenhuma mais. Mais ainda com a quantidade de aparelhos Apple que agora toda a gente tem, aumenta ainda mais a percentagem de público que usa o iTunes e nada mais para comprar música. E eu, assim, vou contra os clientes, na esperança de que vão atrás de mim? A experiência diz-me que não, não vão. Apesar de ser só escrever mais um URL, os consumidores na Internet são do mais estático que há. Sou do mesmo tempo em que andávamos pelas lojas todas, a palmilhar quilómetros atrás de quilómetros à procura de música. O paradoxal da modernidade é este: não é preciso sair do mesmo sítio para ir a mais lojas do que alguma vez pudemos ir. E o que acontece? Vamos só a uma ou duas. Podemos ir a mais mas não vamos. E quando tinhamos de nos mover para procurar a música que queremos, ir a Vigo, a Lisboa ou aonde quer que fosse, era um imperativo.
Hoje entrou em vigor uma nova lei que regula as práticas restritivas do comércio. A nossa situação não é diferente. E aquilo que estas lojas com um quase monopólio de venda online fazem não é longe daquilo que se achou que devia ser protegido nesse diploma. Só se pede um olhar igual para coisas iguais, como acho que isto é. Porque acho que, apesar do que diz no artigo, que o Google não é o simples prestador de serviços que refere. E é a própria Google que reconhece isso mesmo, quando ainda ontem decidiu, em França, estimular a transição dos media franceses para o espaço digital com 60 milhões de euros, ciente que está que é um preço baixo a pagar em relação às legítimas pretensões dos produtores de conteúdo.